segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O transbordamento

Considero-me uma dessas pessoas que sentem demais, que captam cada pedacinho de sentimento de forma tão intensa que às vezes chega a ser difícil de respirar, ainda mais com a acumulação de peso sobre os ombros e sobre os olhos. É tanto acúmulo de energia que chego a me sentir maior do que eu realmente sou. Mas esta sou eu. Também é você?

Há dias e noites. Há noites intensas e ruidosas e há noites frias e solitárias. Os dias são mais quentes. Mas as noites podem ser gélidas quando solitárias. É uma repetição diária do anoitecer e do amanhecer, sempre no mesmo ritmo. E alma se agita com a aflição de quem quer mudar de caminho. Para mudar não basta pensar. Tá certo que o pensamento é o gatilho, mas é preciso disparar a arma.

O corpo é frágil e nos iludimos em uma falsa fortaleza. Aquela tal fortaleza que construímos com pilares de fingimento ao nos confundirmos com o outro. Nela nos envolvemos e cobrimos nossos olhos. Sinais e sinais à sua frente, ao seu redor, de dentro, de fora, de todos os lados, alarmes aos montes, mas é mais confortável não se mexer, viver no falso mundo criado sobre uma base construída com ilusões, fantasias e utopias.

Corpo é energia que movimenta. Se não movimenta, não extravasa, nem gasta, ele decai. Corpo também é pressão, se não move, enfraquece, adoece. Corpo é limite, é um bem que deve ser cuidado, mas muitas vezes é ignorado, desrespeitado. E quando acende o sinal vermelho, talvez seja tarde para reconhecer que não somos fortalezas. Tarde para reconhecer que somos humanos e que o adoecer e a morte andam do nosso lado, à espreita, de mãos dadas com nossos pontos mais fracos.

Corpo é emoção, que grita, que transcende, que busca uma chama que não se sabe bem o que é. Só se sabe que quer senti-la em toda a sua intensidade e magnitude. Que quer buscá-la dentro e fora de si. Porque ficar parado angustia, é uma falsa ilusão de comodismo, de mais fácil. O caminho que parece ser o mais rápido e fácil, se torna o mais difícil e árduo. Se pararmos bem pra pensar, não é cômodo, na realidade é duro e penoso estagnar-se no comodismo, na mesmice, no conhecido.
As conseqüências são muitas. E acredite, a maioria não é boa. Quando nos deparamos com elas, ficamos sem chão, sem identidade. Fica tão difícil responder quem é você mesmo. Você se limita, se esconde, se fecha. Junto a tudo isso vem uma imensidão de dúvidas. A dúvida é angustiante. A guerra interna vem à tona. Ela não está começando. Só está emergindo de um lugar que já existia há muito tempo. E você não está pronto para ela.

Há dias que desejamos tão intensamente que chegamos a sufocar. Mas falta a coragem de viver nossos desejos. Falta a coragem de largar as roupas usadas e correr sem rumo, sem olhar para trás, sem remorso, ou algo ou alguém que a prenda. Uma prisão que muitas vezes é um buraco escuro que não se vê sentido, que torna a vida vazia e vaga, sem saber ao menos o que viver realmente. Sem saber pelo que seguir. Você apenas vive o que planejam pra você.

É uma vontade intensa que às vezes dói como doença, e às vezes vibra como a esperança por um dia novo. É uma vontade que anseia a cada segundo, sem mostrar caminho ou direção. Ela só sabe que quer ir e tão logo quanto possível. É uma vontade que aspira ser destemida e almeja passar por cima de qualquer dor ou entorpecimento que imobilize a alma. É uma vontade que fala e descreve quem você é de verdade.

Entorpecimento, é isso que destrói a alma, é isso que faz doer mais do que qualquer dor física. É uma dor sem cor, toque ou forma, não tem um ponto certo e não se vê. Ela absorve a vida e a nossa essência, que nasce vívida em todos nós, mas é sugada e abafada com o crescer. Entorpecer é sufocar-se na própria respiração, que vai se tornando pesada e arrastada. A gente desaprende até a respirar levemente.

Chega o dia que transborda, como um copo que transborda água de tão cheio. Como o mar que invade a terra para externar o que há nas profundezas. Não há mais espaço, o entorpecimento ultrapassou o limite do suportável. Muitas vezes parece um copo vedado, pressionado tão fortemente a ponto de explodir. Uma explosão, que se não cuidado antes, se manifesta intensamente no corpo. E dói, dói como você nunca pensou que fosse doer.

A doença que era da alma, se torna doença palpável no corpo. A doença que não podíamos tocar e ignorávamos, agora toma forma, corpo e voz. Uma voz que assusta, amedronta e apavora até o mais profundo do nosso Ser. Ficamos perdidos e desnorteados, afundando-se na lama das neuroses criadas e alimentadas. Afundamos em nossa própria construção. É um buraco escuro, solitário e assustador que você precisa encarar.

A doença maltrata, atormenta, aterroriza por quem a olha bem de perto, por quem a vive, por quem é atingido. Ela cutuca nossas feridas mais profundas, àquelas que jamais desejaríamos olhar. Ainda que a gente se afunde em negação e raiva, ainda assim, sabemos que está lá e que dela não podemos fugir.

Nadamos num rio escuro e profundo. Apavorados e sozinhos ficamos desesperados, angustiados. Por não suportar estes sentimentos, transformamo-los em flechas apontadas para todos os lados. Atiramos sem direção como uma tentativa desesperada de fuga e negação. Mas a fuga não é possível. Ainda quando se tenta correr para morte, ainda assim não se pode fugir daquilo que a vida inteira tentamos evitar.

Fugir é uma tentativa falha que tentamos inúmeras vezes, mesmo com os contínuos fracassos e frustrações, mesmo enxergando que fugir só prolonga o caminho, que se torna ainda mais doloroso. Ainda assim desejamos fugir. Acumulando mais pesos, mais marcas e dores. Uma hora o rio escuro transborda, uma hora só existirá o rio escuro. Uma hora será só você e a escuridão da sua própria dor.

Quando a dor e as mentiras inventadas transbordam, o corpo clama e a alma protesta, transformando-se num grito desesperado. Nós somos humanos, e o corpo não aguenta, ele também padece. Quando o corpo padece, a alma adoece junto e vice-versa, porque os dois, diferente do que nos é ensinado a acreditar, jamais estão separados. Eles são um só. É uma separação cultural bem difícil de compreender.

Nosso corpo carece de leveza e ele te avisa e te suplica todos os dias, mas somos treinados para não escutá-lo, para ignorá-lo, para acreditamos que somos feitos de ferro e não humanos. Mas até mesmo o ferro corrói, enferruja. Somos treinados a pensar que nunca seremos nós a nadar no rio escuro e a percorrer pelas nossas próprias sombras. Tudo é o outro. Tudo só acontece com o outro. Até o culpado pelos nossos erros é o outro.

O isolamento e a negação podem te isolar permanente em águas escuras. Mas não culpe a teoria. Você escolheu permanecer e construir muros que separam você da vida. Que separam você de águas límpidas e transparentes. O nado é longo e cansativo, mas aumentar ou encurtar essa distância é questão de escolha. Temos capacidade de autonomia. Temos plena capacidade de escolhermos onde queremos ficar e estar. Não importa o que seja, ainda assim foi escolha sua.

Transbordar é ultrapassar um limite que devíamos sempre respeitar. É ultrapassar o limite do que podemos suportar. É chegar ao intolerável. A sua mente pode até te enganar com uma falsa tolerância, mas o seu corpo e sua alma, estes jamais te enganarão. Basta saber ouvi-los, compreendê-los em sua forma e jeito de ser, pois não existe regra, existe individualidade.

Existe você. Saiba enxergar-se antes que o seu rio escuro transborde.






[Suzanne Leal]

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